RE 439723/SP*
RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
EMENTA: IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AÇÃO CIVIL. LITISCONSORTE
PASSIVO QUE ERA, À ÉPOCA DA INSTAURAÇÃO DO PROCESSO JUDICIAL, JUIZ
INTEGRANTE DE TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO. PRETENDIDO RECONHECIMENTO
DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, POR EFEITO DO
QUE DISPÕE O ART. 105, I, “a”, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, c/c A LEI
Nº 10.628/2002. INADMISSIBILIDADE. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE,
PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM SEDE DE CONTROLE ABSTRATO, DA LEI Nº
10.628/2002 (ADI 2.797/DF). COMPETÊNCIA DE MAGISTRADO DE PRIMEIRO GRAU.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO EM PARTE E, NESSA PARTE, IMPROVIDO.
– Compete, ao magistrado de primeira instância, processar e julgar
ação civil de improbidade administrativa, ainda que ajuizada contra
autoridade pública que dispõe, nas infrações penais comuns, perante
qualquer Tribunal judiciário, mesmo que se trate de Tribunal Superior da
União ou que se cuide do próprio Supremo Tribunal Federal, de
prerrogativa de foro “ratione muneris”. Doutrina. Precedentes.
DECISÃO: Trata-se de recurso extraordinário interposto contra
acórdão, que, confirmado pelo E. Superior Tribunal de Justiça, em sede
de embargos de declaração (fls. 1.015/1.021), está assim ementado (fls.
993):
“PROCESSO CIVIL – RECLAMAÇÃO – INCIDENTE EM AÇÃO CIVIL DE IMPROBIDADE – INCOMPETÊNCIA DO STJ.
1. A ação civil tramita no primeiro grau de jurisdição por força de decisão da Corte Especial.
2. Incidente de reclamação oriundo da ação civil, questionando a competência por força da Lei 10.628/02.
3. Questão competencial pendente de recurso no STF.
4. Agravo regimental improvido.”
(Rcl 1.428-AgR/SP, Rel. Min. ELIANA CALMON – grifei)
A parte ora recorrente, ao deduzir este apelo extremo, sustenta
que o Tribunal “a quo” teria transgredido os preceitos inscritos no
art. 5º, incisos XXXV, LIII, LIV e LV e no art. 105, I, “a” e “f”, da
Constituição da República.
Sob tal perspectiva, revela-se absolutamente inviável o presente recurso extraordinário.
É que, com relação à alegada ofensa à norma inscrita no art. 5º,
XXXV, da Constituição, torna-se evidente que, no caso ora em exame, foi
assegurado, à parte ora recorrente, o direito de acesso à jurisdição
estatal, não se podendo inferir, do insucesso processual que
experimentou, o reconhecimento de que lhe teria sido denegada a
concernente prestação jurisdicional.
Com efeito, não se negou, à parte recorrente, o direito à
prestação jurisdicional do Estado. Este, bem ou mal, apreciou, por
intermédio de órgãos judiciários competentes, o litígio que lhe foi
submetido.
É preciso ter presente que a prestação jurisdicional, ainda que
errônea, incompleta ou insatisfatória, não deixa de configurar-se como
resposta efetiva do Estado-Juiz à invocação, pela parte interessada, da
tutela jurisdicional do Poder Público, circunstância que afasta a
alegada ofensa a quanto prescreve o art. 5º, XXXV, da Carta Política,
consoante tem enfatizado o magistério jurisprudencial do Supremo
Tribunal Federal (RTJ 132/455, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 141/980,
Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 120.933-AgR/RS, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA
– AI l25.492-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS MADEIRA).
A prestação jurisdicional, que se revela contrária ao interesse de
quem a postula, não se identifica, não se equipara, nem se confunde,
para efeito de acesso à via recursal extraordinária, com a ausência de
prestação jurisdicional.
Impende assinalar, ainda, a propósito da alegada violação ao art.
5º, incisos LIV e LV, da Constituição, que a orientação jurisprudencial
desta Suprema Corte tem salientado, considerado o princípio do devido
processo legal (neste compreendida a cláusula inerente à plenitude de
defesa), que a suposta ofensa ao texto constitucional, caso existente,
apresentar-se-ia por via reflexa, eis que a sua constatação reclamaria –
para que se configurasse – a formulação de juízo prévio de legalidade,
fundado na vulneração e infringência de dispositivos de ordem meramente
legal.
Daí revelar-se inteiramente ajustável, ao caso ora em exame, o
entendimento jurisprudencial desta Corte Suprema, no sentido de que “O
devido processo legal – CF, art. 5º, LV – exerce-se de conformidade com a
lei” (AI 192.995-AgR/PE, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei), razão pela
qual a alegação de desrespeito à cláusula do devido processo legal, por
traduzir transgressão “indireta, reflexa, dado que a ofensa direta
seria a normas processuais” (AI 215.885-AgR/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES –
AI 414.167/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 257.533-AgR/RS, Rel. Min.
CARLOS VELLOSO), não autoriza o acesso à via recursal extraordinária:
“DUE PROCESS OF LAW E PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
– A garantia do devido processo legal exerce-se em conformidade
com o que dispõe a lei, de tal modo que eventual desvio do ato decisório
configurará, quando muito, situação tipificadora de conflito de mera
legalidade, apto a desautorizar a utilização do recurso extraordinário.
Precedentes.”
(RTJ 189/336-337, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
“– Alegação de ofensa ao devido processo legal: C.F., art. 5º,
LV: se ofensa tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a
ofensa direta seria a normas processuais. E a ofensa a preceito
constitucional que autoriza a admissão do recurso extraordinário é a
ofensa direta, frontal.”
(AI 427.186-AgR/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei)
“Inviável o processamento do extraordinário para debater
matéria infraconstitucional, sob o argumento de violação ao disposto nos
incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição.
Agravo regimental improvido.”
(AI 447.774-AgR/CE, Rel. Min. ELLEN GRACIE – grifei)
Nem se alegue, neste ponto, que a suposta transgressão ao
ordenamento legal – derivada da interpretação que lhe deu o órgão
judiciário “a quo” – teria importado em desrespeito ao princípio
constitucional da legalidade.
Não se pode desconsiderar, quanto a tal postulado, a orientação
firmada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja jurisprudência vem
proclamando, a propósito desse tema, que o procedimento hermenêutico do
Tribunal inferior – quando examina o quadro normativo positivado pelo
Estado e dele extrai a interpretação dos diversos diplomas legais que o
compõem, para, em razão da inteligência e do sentido exegético que lhes
der, obter os elementos necessários à exata composição da lide – não
transgride, diretamente, o princípio da legalidade (AI 161.396-AgR/SP,
Rel. Min. CELSO DE MELLO – AI 192.995-AgR/PE, Rel. Min. CARLOS VELLOSO –
AI 307.711/PA, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
É por essa razão – ausência de conflito imediato com o texto da
Constituição – que a jurisprudência desta Corte vem enfatizando que “A
boa ou má interpretação de norma infraconstitucional não enseja o
recurso extraordinário, sob color de ofensa ao princípio da legalidade
(CF, art. 5º, II)” (RTJ 144/962, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei):
“E é pacífica a jurisprudência do S.T.F., no sentido de não
admitir, em R.E., alegação de ofensa indireta à Constituição Federal,
por má interpretação de normas infraconstitucionais, como as
trabalhistas e processuais (…).”
(AI 153.310-AgR/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – grifei)
“A alegação de ofensa ao princípio da legalidade, inscrito no
art. 5º, II, da Constituição da República, não autoriza, só por si, o
acesso à via recursal extraordinária, pelo fato de tal alegação tornar
indispensável, para efeito de sua constatação, o exame prévio do
ordenamento positivo de caráter infraconstitucional, dando ensejo, em
tal situação, à possibilidade de reconhecimento de hipótese de mera
transgressão indireta ao texto da Carta Política. Precedentes.”
(RTJ 189/336-337, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Não foi por outro motivo que o eminente Ministro MOREIRA ALVES,
Relator, ao apreciar o tema pertinente ao postulado da legalidade, em
conexão com o emprego do recurso extraordinário, assim se pronunciou:
“A alegação de ofensa ao artigo 5º, II, da Constituição, por
implicar o exame prévio da legislação infraconstitucional, é alegação de
infringência indireta ou reflexa à Carta Magna, não dando margem,
assim, ao cabimento do recurso extraordinário.”
(AI 339.607/MG, Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei)
Cumpre acentuar, neste ponto, que essa orientação acha-se
presentemente sumulada por esta Corte, como resulta claro da Súmula 636
do Supremo Tribunal Federal, cuja formulação possui o seguinte conteúdo:
“Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio
constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha
rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão
recorrida.” (grifei)
De outro lado, e no que se refere à alegação de que “(…) o
Juízo Federal da 12ª Vara Federal da Subseção Judiciária de São Paulo é
absolutamente incompetente para processar e julgar as ações de
improbidade, ajuizadas pelo Ministério Público Federal, que tenham como
réus Juízes de Tribunal Regional do Trabalho (…)” (fls. 1.048 – grifei),
cabe assinalar que o presente recurso extraordinário – examinada a
pretensão recursal sob tal perspectiva – revela-se processualmente
inviável, eis que se insurge contra acórdão que decidiu a causa em
estrita conformidade com a orientação jurisprudencial que o Supremo
Tribunal Federal firmou na matéria em análise.
Com efeito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a
ADI 2.797/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, declarou a
inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002, que acresceu, ao art. 84 do
CPP, os respectivos §§ 1º e 2º, cujo teor dá suporte à pretensão
recursal ora deduzida nesta sede de apelo extremo.
O julgamento plenário em questão, ao reconhecer a
inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002, que foi analisada na
perspectiva das atribuições jurisdicionais que a própria Constituição da
República deferiu a esta Suprema Corte (e, também, ao STJ), teve em
consideração, para esse efeito, a circunstância de que a competência
originária do Supremo Tribunal Federal – precisamente por revestir-se de
extração constitucional (à semelhança do que sucede com a competência
originária do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais
Federais) – submete-se, por isso mesmo, a regime de direito estrito (RTJ
43/129 – RTJ 44/563 – RTJ 50/72 – RTJ 53/766 – RTJ 94/471 – RTJ 121/17 –
RTJ 141/344 – RTJ 159/28 – RTJ 171/101-102, v.g.), não podendo, desse
modo, ser ampliada nem restringida por legislação meramente comum
(ordinária ou complementar), sob pena de frontal desrespeito ao texto da
Lei Fundamental da República.
É importante rememorar, neste ponto, que o Supremo Tribunal
Federal, há 114 anos, em decisão proferida em 17 de agosto de 1895
(Acórdão n. 5, Rel. Min. JOSÉ HYGINO), já advertia, no final do século
XIX, não ser lícito ao Congresso Nacional, mediante atividade
legislativa comum, ampliar, suprimir ou reduzir a esfera de competência
da Corte Suprema, pelo fato de tal complexo de atribuições
jurisdicionais, tal como hoje ocorre com o Superior Tribunal de Justiça,
derivar, de modo imediato, do próprio texto constitucional,
proclamando, então, naquele julgamento, a impossibilidade de tais
modificações por via meramente legislativa, “por não poder qualquer lei
ordinária aumentar nem diminuir as atribuições do Tribunal (…)”
(“Jurisprudência/STF”, p. 100/101, item n. 89, 1897, Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional – grifei).
Essa mesma orientação tem o beneplácito de autorizado magistério
doutrinário (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”,
p. 2.681/2.683, item n. 17.3, 2ª ed., 2003, Atlas – RODOLFO DE CAMARGO
MANCUSO, “Ação Popular”, p. 120/130, 1994, RT – HUGO NIGRO MAZZILLI, “O
Inquérito Civil”, p. 83/84, 1999, Saraiva – MARCELO FIGUEIREDO,
“Probidade Administrativa”, p. 91, 3ª ed., 1998, Malheiros – WALLACE
PAIVA MARTINS JÚNIOR, “Probidade Administrativa”, p. 318/321, item n.
71, 2001, Saraiva – MARINO PAZZAGLINI FILHO, “Lei de Improbidade
Administrativa Comentada”, p. 173/175, item n. 3.5, 2002, Atlas – JOSÉ
AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 558,
item n. 7, 23ª ed., 2004, Malheiros – MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO,
“Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 2, p. 117, 1992,
Saraiva – SÉRGIO MONTEIRO MEDEIROS, “Lei de Improbidade Administrativa”,
p. 176/177, 1ª ed., 2003, Juarez de Oliveira – FRANCISCO RODRIGUES DA
SILVA, “Foro Privilegiado para Julgamento de Atos de Improbidade
Administrativa, Seu Casuísmo e Atecnias Flagrantes”, “in” Jornal
Trabalhista, JTb Consulex, p. 11/12, XX/963, v.g.), cujas lições, a
propósito da Lei nº 10.628/2002 (expressamente invocada como fundamento
da postulação recursal ora em exame), ressaltam-lhe a
inconstitucionalidade, pelo fato – juridicamente relevante – de falecer,
ao Congresso Nacional, o poder de, mediante simples lei ordinária,
modificar, sob qualquer aspecto, o rol de atribuições jurisdicionais
originárias do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça
e dos Tribunais Regionais Federais.
Cumpre enfatizar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, no
referido julgamento plenário da ADI 2.797/DF, ao declarar a
inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002, na parte em que esta
introduziu o § 2º no art. 84 do CPP, explicitou que, tratando-se de ação
civil por improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), mostra-se
irrelevante, para efeito de definição da competência originária dos
Tribunais, que se cuide de ocupante de cargo público ou de titular de
mandato eletivo ainda no exercício das respectivas funções, pois, em
processos dessa natureza, a ação civil deverá ser ajuizada perante
magistrado de primeiro grau.
Cabe assinalar, por outro lado, que esta Suprema Corte, em tal
julgamento, reconheceu a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002
também no ponto em que esse diploma legislativo atribuía prerrogativa de
foro a ex-ocupantes de cargos públicos e a ex-titulares de mandatos
eletivos, sendo indiferente, para esse efeito, que, contra eles,
houvesse sido instaurado ou estivesse em curso, quer processo penal de
índole condenatória, quer processo resultante do ajuizamento de ação
civil por improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92).
Ao assim decidir, o Supremo Tribunal Federal, relembrando antiga
lição ministrada por JOÃO BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira”,
p. 303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), advertiu que a outorga
desse tratamento seletivo a determinados cidadãos que não mais se acham
no desempenho da função pública – cujo exercício lhes assegurava a
prerrogativa de foro “ratione muneris” – ofende o princípio republicano,
que traduz postulado essencial e inerente à organização
político-constitucional brasileira.
Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da
República. Isso significa, na perspectiva da controvérsia suscitada pela
Lei nº 10.628/2002, que as atribuições constitucionais dos Tribunais
devem merecer interpretação que impeça a indevida expansão, por efeito
de imprópria atividade legislativa comum, de sua competência originária,
para que não se transgrida, com a (inadmissível) concessão de
prerrogativa de foro a ex-ocupantes de cargos públicos ou a ex-titulares
de mandatos eletivos, um valor fundamental à própria configuração da
idéia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade,
viabilizando-se, desse modo, em relação a quem não mais detém certas
titularidades funcionais no aparelho de Estado, a aplicação ordinária do
postulado do juiz natural, cuja importância tem sido enfatizada, em
sucessivas decisões, por esta Corte Suprema (RTJ 149/962-963 – RTJ
160/1056-1058 – RTJ 169/557 – RTJ 179/378-379, v.g.).
Vê-se, portanto, como anteriormente assinalado, que o acórdão
impugnado nesta sede recursal extraordinária ajusta-se, nesse específico
ponto, à orientação jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou no
exame da matéria ora em análise.
Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando,
sobretudo, o julgamento plenário da ADI 2.797/DF, conheço, em parte, do
presente recurso extraordinário, para, nessa parte, negar-lhe
provimento.
Publique-se.
Brasília, 24 de novembro de 2009.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator