Caracteriza abuso de direito ou ação passível de gerar responsabilidade civil pelos danos causados a impetração do habeas corpus por terceiro com o fim de impedir a
interrupção, deferida judicialmente, de gestação de feto portador de síndrome incompatível com a vida extrauterina. Cingiu-se a controvérsia a dizer se o manejo de habeas corpus
com o fito de impedir a interrupção de gestação que foi judicialmente
deferida se caracteriza como abuso do direito
de ação e (ou) pode gerar responsabilidade civil pelo manejo indevido de
tutela de urgência, da qual teria exsurgido dano moral compensável.
Inconteste a existência de dano, porquanto a interrupção da
gestação do feto com síndrome de Body Stalk, que era uma
decisão pensada e avalizada por médicos e pelo Poder Judiciário, e ainda
assim, de impactos emocionais incalculáveis, foi sustada. Na
hipótese, a certeza médica de inviabilidade de vida extrauterina
consubstanciou-se em realidade, pois uma hora e quarenta minutos após o
nascimento, a criança veio a óbito. Voltando, então, à
análise dos limites jurídicos protetivos dos fetos, na hipótese de
anencefalia, e a comparação desses elementos às circunstâncias em que um
feto tenha a Síndrome de Body Stalk, ou mesmo
outra síndrome que enclausure a vida ao útero, cabe enunciar de plano
que, embora o Direito resguarde o nascituro, o faz na expectativa de que
aquela vida intrauterina, ainda sem personalidade jurídica, possa se
tornar pessoa,
sujeita a todas as garantias constitucionais. No julgamento da ADPF 54,
viu-se que esse tegumento protetivo-legal que envolve o nascituro se
torna completamente inócuo ante a constatação de que o feto é portador
de problemas
de saúde, de qualquer matriz, que tornam inviável a vida extrauterina,
isso porque a proteção que se projeta para o futuro labora com realidade
inexistente: vida extrauterina. Inafastável se dizer que a
interrupção da gravidez, por incompatibilidade com a vida extrauterina, é
um minus, mesmo em relação ao aborto humanitário, pois,
primeiro, mostra-se ontologicamente distinta do aborto-crime e, por
segundo, encontra-se, em grau de reprovabilidade social, aquém daquele
outro, no qual a vítima de estupro que engravida pode, judicialmente
amparada, optar pela cessação da gestação. Na hipótese analisada
na ADPF 54 e também neste recurso especial – a inviabilidade da vida
extrauterina –, à intensa dor emocional soma-se o incontornável
vaticínio de óbito da criança logo após o parto, se
até lá chegar à gestação. Entenda-se: à indizível dor emocional,
agrega-se a inexistência de vida futura a ser futuramente protegida. O
intenso sofrimento vivido pela mãe, após o
diagnóstico de uma síndrome que incompatibiliza a vida do feto com o
ambiente extrauterino, é de tal quilate, que faz preponderar o
particular direito dela à própria intimidade, liberdade e
autodeterminação na condução de sua vida privada. Leia-se, também aqui,
cabia só a ela, pela similaridade das condições apresentadas, dizer,
diante de sua realidade emocional, da fé que
professava, ou não professava, das expectativas que nutria, ou diante
daquelas que deixara de alimentar, se deveria ou não interromper a
gestação. A interrupção da gravidez era um direito próprio, do qual
poderia fazer uso, sem risco de persecução penal posterior e,
principalmente, sem possibilidade de interferências de terceiros, na
tentativa de obstar sua decisão. Centrando atenção na existência ou
não de abuso do direito, com a impetração do habeas corpus para
impedir a interrupção da gravidez, cabe dizer que de há muito vigora a
ideia de que há limites para o exercício de qualquer
direito, que é dado e mensurado, pela vulneração à matriz teleológica
desse próprio direito. Assim, a sôfrega e imprudente busca por um
direito legítimo, que faz perecer no caminho, direito de
outrem, ou mesmo uma toldada percepção do próprio direito, que impele
alguém a avançar sobre direito alheio, podem ser considerados abuso de
direito. A busca do Poder Judiciário por uma tutela de urgência
traz, para aquele que a maneja, o ônus da responsabilidade pelos danos
que porventura a concessão do pleito venha a produzir, principalmente
quando ocorre hipótese de abuso de direito. No manejo do habeas corpus com
pedido
liminar, posteriormente recebido como mandado de segurança, houve: a)
violação à intimidade e à vida privada do casal, tentando fazer
prevalecer posição particular em relação à
interrupção da gestação, mesmo estando os pais amparados, na decisão que
tomaram, por tutela judicial; b) agressão à honra ao denominar a
atitude de interrupção da gravidez sob os
auspícios do Estado de assassinato; c) ação temerária (por ocasião do
pedido de suspensão do procedimento médico de interrupção da gravidez,
que já estava em curso) e a
imposição aos pais – notadamente à mãe – de sofrimento inócuo. Assim,
impõe-se o reconhecimento de dano ao espaço reservado à liberdade de
outros e, ainda, por incúria ou
perfídia, a utilização de um direito próprio – direito de ação – para
impor aos pais estigma emocional que os acompanhará perenemente.
REsp 1.467.888-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 20/10/2016, DJe 25/10/2016.
REsp 1.467.888-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 20/10/2016, DJe 25/10/2016.
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