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20/10/2016

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABUSO DE DIREITO. IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS. IMPEDIMENTO DE INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. SÍNDROME DE BODY STALK.

Caracteriza abuso de direito ou ação passível de gerar responsabilidade civil pelos danos causados a impetração do habeas corpus por terceiro com o fim de impedir a interrupção, deferida judicialmente, de gestação de feto portador de síndrome incompatível com a vida extrauterina. Cingiu-se a controvérsia a dizer se o manejo de habeas corpus com o fito de impedir a interrupção de gestação que foi judicialmente deferida se caracteriza como abuso do direito de ação e (ou) pode gerar responsabilidade civil pelo manejo indevido de tutela de urgência, da qual teria exsurgido dano moral compensável. Inconteste a existência de dano, porquanto a interrupção da gestação do feto com síndrome de Body Stalk, que era uma decisão pensada e avalizada por médicos e pelo Poder Judiciário, e ainda assim, de impactos emocionais incalculáveis, foi sustada. Na hipótese, a certeza médica de inviabilidade de vida extrauterina consubstanciou-se em realidade, pois uma hora e quarenta minutos após o nascimento, a criança veio a óbito. Voltando, então, à análise dos limites jurídicos protetivos dos fetos, na hipótese de anencefalia, e a comparação desses elementos às circunstâncias em que um feto tenha a Síndrome de Body Stalk, ou mesmo outra síndrome que enclausure a vida ao útero, cabe enunciar de plano que, embora o Direito resguarde o nascituro, o faz na expectativa de que aquela vida intrauterina, ainda sem personalidade jurídica, possa se tornar pessoa, sujeita a todas as garantias constitucionais. No julgamento da ADPF 54, viu-se que esse tegumento protetivo-legal que envolve o nascituro se torna completamente inócuo ante a constatação de que o feto é portador de problemas de saúde, de qualquer matriz, que tornam inviável a vida extrauterina, isso porque a proteção que se projeta para o futuro labora com realidade inexistente: vida extrauterina. Inafastável se dizer que a interrupção da gravidez, por incompatibilidade com a vida extrauterina, é um minus, mesmo em relação ao aborto humanitário, pois, primeiro, mostra-se ontologicamente distinta do aborto-crime e, por segundo, encontra-se, em grau de reprovabilidade social, aquém daquele outro, no qual a vítima de estupro que engravida pode, judicialmente amparada, optar pela cessação da gestação. Na hipótese analisada na ADPF 54 e também neste recurso especial – a inviabilidade da vida extrauterina –, à intensa dor emocional soma-se o incontornável vaticínio de óbito da criança logo após o parto, se até lá chegar à gestação. Entenda-se: à indizível dor emocional, agrega-se a inexistência de vida futura a ser futuramente protegida. O intenso sofrimento vivido pela mãe, após o diagnóstico de uma síndrome que incompatibiliza a vida do feto com o ambiente extrauterino, é de tal quilate, que faz preponderar o particular direito dela à própria intimidade, liberdade e autodeterminação na condução de sua vida privada. Leia-se, também aqui, cabia só a ela, pela similaridade das condições apresentadas, dizer, diante de sua realidade emocional, da fé que professava, ou não professava, das expectativas que nutria, ou diante daquelas que deixara de alimentar, se deveria ou não interromper a gestação. A interrupção da gravidez era um direito próprio, do qual poderia fazer uso, sem risco de persecução penal posterior e, principalmente, sem possibilidade de interferências de terceiros, na tentativa de obstar sua decisão. Centrando atenção na existência ou não de abuso do direito, com a impetração do habeas corpus para impedir a interrupção da gravidez, cabe dizer que de há muito vigora a ideia de que há limites para o exercício de qualquer direito, que é dado e mensurado, pela vulneração à matriz teleológica desse próprio direito. Assim, a sôfrega e imprudente busca por um direito legítimo, que faz perecer no caminho, direito de outrem, ou mesmo uma toldada percepção do próprio direito, que impele alguém a avançar sobre direito alheio, podem ser considerados abuso de direito. A busca do Poder Judiciário por uma tutela de urgência traz, para aquele que a maneja, o ônus da responsabilidade pelos danos que porventura a concessão do pleito venha a produzir, principalmente quando ocorre hipótese de abuso de direito. No manejo do habeas corpus com pedido liminar, posteriormente recebido como mandado de segurança, houve: a) violação à intimidade e à vida privada do casal, tentando fazer prevalecer posição particular em relação à interrupção da gestação, mesmo estando os pais amparados, na decisão que tomaram, por tutela judicial; b) agressão à honra ao denominar a atitude de interrupção da gravidez sob os auspícios do Estado de assassinato; c) ação temerária (por ocasião do pedido de suspensão do procedimento médico de interrupção da gravidez, que já estava em curso) e a imposição aos pais – notadamente à mãe – de sofrimento inócuo. Assim, impõe-se o reconhecimento de dano ao espaço reservado à liberdade de outros e, ainda, por incúria ou perfídia, a utilização de um direito próprio – direito de ação – para impor aos pais estigma emocional que os acompanhará perenemente.
REsp 1.467.888-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 20/10/2016, DJe 25/10/2016.

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