A tortura de
preso custodiado em delegacia praticada por policial constitui ato
de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da
administração pública. O legislador estabeleceu premissa
que deve orientar o agente público em toda a sua atividade, a saber:
"Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são
obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos
assuntos que lhe são afetos". Em reforço, o art. 11, I, da mesma
lei, reitera que configura improbidade a violação a quaisquer
princípios da administração, bem como a deslealdade às instituições,
notadamente a prática de ato visando a fim proibido em lei ou
regulamento. Tais disposições evidenciam que o legislador teve
preocupação redobrada em estabelecer que a grave desobediência - por
parte de agentes públicos - ao sistema normativo em vigor pode
significar ato de improbidade. Com base nessas premissas, a Segunda
Turma já teve oportunidade de decidir que "A Lei 8.429/1992 objetiva
coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que
demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando
uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade
desenvolvida" (REsp 1.297.021-PR, DJe 20/11/2013). É certo que o
STJ, em alguns momentos, mitiga a rigidez da interpretação literal
dos dispositivos acima, porque "não se pode confundir improbidade
com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e
qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso
mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a
caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa,
para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei
8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10"
(AIA 30-AM, Corte Especial, DJe 28/9/2011). A referida mitigação,
entretanto, ocorre apenas naqueles casos sem gravidade, sem
densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento
subjetivo. De qualquer maneira, a detida análise da Lei n.
8.429/1992 demonstra que o legislador, ao dispor sobre o assunto,
não determinou expressamente quais seriam as vítimas mediatas ou
imediatas da atividade desonesta para fins de configuração do ato
como ímprobo. Impôs, sim, que o agente público respeite o sistema
jurídico em vigor e o bem comum, que é o fim último da Administração
Pública. Essa ausência de menção explícita certamente decorre da
compreensão de que o ato ímprobo é, muitas vezes, um fenômeno
pluriofensivo, ou seja, ele pode atingir bens jurídicos diversos.
Ocorre que o ato que apenas atingir bem privado e individual jamais
terá a qualificação de ímprobo, nos termos do ordenamento em vigor.
O mesmo não ocorre, entretanto, com o ato que atingir bem/interesse
privado e público ao mesmo tempo. Aqui, sim, haverá potencial
ocorrência de ato de improbidade. Por isso, o primordial é verificar
se, dentre todos os bens atingidos pela postura do agente, existe
algum que seja vinculado ao interesse e ao bem público. Se assim
for, como consequência imediata, a Administração Pública será
vulnerada de forma concomitante. No caso em análise, trata-se de
discussão sobre séria arbitrariedade praticada por policial, que, em
tese, pode ter significado gravíssimo atentado contra direitos
humanos. Com efeito, o respeito aos direitos fundamentais, para além
de mera acepção individual, é fundamento da nossa República,
conforme o art. 1º, III, da CF, e é objeto de preocupação permanente
da Administração Pública, de maneira geral. De tão importante, a
prevalência dos direitos humanos, na forma em que disposta no inciso
II do art. 4º da CF, é vetor de regência da República Federativa do
Brasil nas suas relações internacionais. Não por outra razão,
inúmeros são os tratados e convenções assinados pelo nosso Estado a
respeito do tema. Dentre vários, lembra-se a Convenção Americana de
Direito Humanos (promulgada pelo Decreto n. 678/1992), que já no seu
art. 1º, dispõe explicitamente que os Estados signatários são
obrigados a respeitar as liberdades públicas. E, de forma mais
eloquente, os arts. 5º e 7º da referida convenção reforçam as suas
disposições introdutórias ao prever, respectivamente, o "Direito à
integridade pessoal" e o "Direito à liberdade pessoal". A essas
previsões, é oportuno ressaltar que o art. 144 da CF é taxativo
sobre as atribuições gerais das forças de segurança na missão de
proteger os direitos e garantias acima citados. Além do mais, é
injustificável pretender que os atos mais gravosos à dignidade da
pessoa humana e aos direitos humanos, entre os quais a tortura,
praticados por servidores públicos, mormente policiais armados,
sejam punidos apenas no âmbito disciplinar, civil e penal,
afastando-se a aplicação da Lei da Improbidade Administrativa. Essas
práticas ofendem diretamente a Administração Pública, porque o
Estado brasileiro tem a obrigação de garantir a integridade física,
psíquica e moral de todos, sob pena de inúmeros reflexos jurídicos,
inclusive na ordem internacional. Pondere-se que o agente público
incumbido da missão de garantir o respeito à ordem pública, como é o
caso do policial, ao descumprir com suas obrigações legais e
constitucionais de forma frontal, mais que atentar apenas contra um
indivíduo, atinge toda a coletividade e a própria corporação a que
pertence de forma imediata. Ademais, pertinente reforçar que o
legislador, ao prever que constitui ato de improbidade
administrativa que atenta contra os princípios da administração
pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de lealdade às
instituições, findou por tornar de interesse público, e da própria
Administração em si, a proteção da imagem e das atribuições dos
entes/entidades públicas. Disso resulta que qualquer atividade
atentatória a esse bem por parte de agentes públicos tem a
potencialidade de ser considerada como improbidade administrativa.
Afora isso, a tortura perpetrada por policiais contra presos
mantidos sob a sua custódia tem outro reflexo jurídico imediato. Ao
agir de tal forma, o agente público cria, de maneira praticamente
automática, obrigação ao Estado, que é o dever de indenizar, nos
termos do art. 37, § 6º, da CF. Na hipótese em análise, o ato
ímprobo caracteriza-se quando se constata que a vítima foi torturada
em instalação pública, ou melhor, em delegacia de polícia. Por fim,
violência policial arbitrária não é ato apenas contra o
particular-vítima, mas sim contra a própria Administração Pública,
ferindo suas bases de legitimidade e respeitabilidade. Tanto é assim
que essas condutas são tipificadas, entre outros estatutos, no art.
322 do CP, que integra o Capítulo I ("Dos Crimes Praticados por
Funcionário Público contra a Administração Pública"), que por sua
vez está inserido no Título XI ("Dos Crimes contra a Administração
Pública"), e também nos arts. 3º e 4º da Lei n. 4.898/1965, que
trata do abuso de autoridade. Em síntese, atentado à vida e à
liberdade individual de particulares, praticado por agentes públicos
armados - incluindo tortura, prisão ilegal e "justiciamento" -,
afora repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, pode
configurar improbidade administrativa, porque, além de atingir a
pessoa-vítima, alcança, simultaneamente, interesses caros à
Administração em geral, às instituições de segurança pública em
especial, e ao próprio Estado Democrático de Direito. Precedente
citado: REsp 1.081.743-MG, Segunda Turma, julgado em 24/3/2015.
REsp 1.177.910-SE, Rel. Ministro Herman
Benjamin, julgado em 26/8/2015, DJe 17/2/2016.
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