A tese da reserva do possível (Der Vorbehalt
des Möglichen) assenta-se na idéia romana de que a obrigação
impossível não pode ser exigida (impossibilium nulla obligatio
est). Por tal motivo, não se considera a insuficiência de
recursos orçamentários como mera falácia. Todavia, observa-se que a
reserva do possível está vinculada à escassez, que pode ser
compreendida como desigualdade. Bens escassos não podem ser
usufruídos por todos e, justamente por isso, sua distribuição faz-se
mediante regras que pressupõem o direito igual ao bem e a
impossibilidade do uso igual e simultâneo. Essa escassez, muitas
vezes, é resultado de escolha, de decisão: quando não há recursos
suficientes, a decisão do administrador de investir em determinada
área implica escassez de outra que não foi contemplada. Por esse
motivo, em um primeiro momento, a reserva do possível não pode ser
oposta à efetivação dos direitos fundamentais, já que não cabe ao
administrador público preteri-la, visto que não é opção do
governante, não é resultado de juízo discricionário, nem pode ser
encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Nem
mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como
secundários. Isso porque a democracia é, além dessa vontade, a
realização dos direitos fundamentais. Portanto, aqueles direitos que
estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados
em razão da escassez, quando ela é fruto das escolhas do
administrador. Não é por outra razão que se afirma não ser a reserva
do possível oponível à realização do mínimo existencial. Seu
conteúdo, que não se resume ao mínimo vital, abrange também as
condições socioculturais que assegurem ao indivíduo um mínimo de
inserção na vida social. Sendo assim, não fica difícil perceber que,
entre os direitos considerados prioritários, encontra-se o direito à
educação. No espaço público (no qual todos são, in
abstrato, iguais e cuja diferenciação dá-se mais em razão da
capacidade para a ação e discurso do que em virtude de atributos
biológicos), local em que são travadas as relações comerciais,
profissionais e trabalhistas, além de exercida a cidadania, a
ausência de educação, de conhecimento, em regra, relega o indivíduo
a posições subalternas, torna-o dependente das forças físicas para
continuar a sobreviver, ainda assim, em condições precárias. Eis a
razão pela qual os arts. 227 da CF/1988 e 4º da Lei n. 8.069/1990
dispõem que a educação deve ser tratada pelo Estado com absoluta
prioridade. No mesmo sentido, o art. 54, IV, do ECA prescreve que é
dever do Estado assegurar às crianças de zero a seis anos de idade o
atendimento em creche e pré-escola. Portanto, na hipótese, o pleito
do MP encontra respaldo legal e jurisprudencial. Porém é preciso
ressalvar a hipótese de que, mesmo com a alocação dos recursos no
atendimento do mínimo existencial, persista a carência orçamentária
para atender a todas as demandas. Nesse caso, a escassez não seria
fruto da escolha de atividades não prioritárias, mas sim da real
insuficiência orçamentária. Em situações limítrofes como essa, não
há como o Poder Judiciário imiscuir-se nos planos governamentais,
pois eles, dentro do que é possível, estão de acordo com a CF/1988,
não havendo omissão injustificável. Todavia, a real insuficiência de
recursos deve ser demonstrada pelo Poder Público, não sendo admitido
que a tese seja utilizada como uma desculpa genérica para a omissão
estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais,
principalmente os de cunho social. Dessarte, no caso dos autos, em
que não há essa demonstração, impõe-se negar provimento ao especial
do município. Precedentes citados do STF: AgRg no RE 410.715-SP, DJ
3/2/2006; do STJ: REsp 1.041.197-MS, DJe 16/9/2009; REsp 764.085-PR,
DJe 10/12/2009, e REsp 511.645-SP, DJe 27/8/2009. REsp 1.185.474-SC, Rel. Min. Humberto
Martins, julgado em 20/4/2010.
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