Concessão de terras públicas e segurança jurídica – 1
Ante a peculiaridade do caso, o Plenário, por maioria, julgou
improcedente pedido formulado em ação cível originária, proposta pela
União, em 1959, na qual se pretendia a declaração de nulidade de
contratos em que o antigo Estado do Mato Grosso outorgara a diversas
empresas colonizadoras a concessão de terras públicas com área superior
ao limite previsto na Constituição de 1946 (“Art 156 … § 2º – Sem prévia
autorização do Senado Federal, não se fará qualquer alienação ou
concessão de terras públicas com área superior a dez mil hectares”).
Prevaleceu o voto do Min. Cezar Peluso, relator, que, ao sopesar os
valores envolvidos no feito, declarou a subsistência e a validade dos
contratos em comento perante a norma constitucional invocada. Consignou
que não se estaria a manifestar essa validez perante outros vícios, como
o eventual alcance de terras indígenas, latifúndios improdutivos. Nesse
particular, expressou que, para ambas as hipóteses, a União possuiria
instrumentos adequados sequer aventados neste processo. Ao apontar a
existência de pelo menos três ações cíveis, nesta Corte, que diriam com o
tema, sublinhou que o presente desfecho em nada interferiria na
apreciação daquelas. Fixou, ainda, que cada parte arcasse com os
honorários dos respectivos patronos.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
Concessão de terras públicas e segurança jurídica – 2
Inicialmente, discorreu que a regra da limitação de áreas, para efeito
de alienação e concessão de terras públicas, vigoraria desde a
Constituição de 1934 (“Art 130 – Nenhuma concessão de terras de
superfície, superior a dez mil hectares poderá ser feita sem que, para
cada caso, preceda autorização do Senado Federal”). A de 1937, no art.
155, conservara esse limite, bem assim a de 1946, no § 2º do art. 156. A
limitação em si fora mantida nos estatutos ulteriores, porém a área de
terra que poderia ser alienada ou concedida, sem prévia autorização do
Senado, fora reduzida para até três mil hectares na Constituição de 1967
(art. 164, parágrafo único) e, na CF/88, para dois mil e quinhentos
(art. 49, XVII), quando o controle político passara do Senado para o
Congresso Nacional. Em seguida, assentou que as provas documentais
bastariam para firmar a convicção de que se teria vulnerado o disposto
no art. 156, § 2º. Extraiu dos autos que, sem autorização do Senado: a)
terras com áreas superiores ao limite imposto pela Constituição foram
concedidas a alguns particulares; e b) contratos de colonização de áreas
de duzentos mil hectares foram celebrados com o ente federativo e por
intermédio destes cada empresa ficava “autorizada pelo Estado a promover
a colonização, mediante povoamento das terras e venda de lotes a
colonos”, e, ao menos em um deles, até ceder “os lotes aos seus
colonos”. Em contrapartida, as colonizadoras deveriam prover
infraestrutura básica nas terras. Também havia a previsão de o Estado do
Mato Grosso receber certa parcela do preço, segundo tabela da data da
celebração do contrato de venda ou de promessa de compra e venda para
colonos, a título de compensação pela concessão dominial de suas terras
devolutas. Advertiu que essas obrigações assumidas pelas empresas não se
confundiriam com a contraprestação específica e própria do negócio
jurídico de compra e venda. Evidenciou que, sob a denominação de
contratos de colonização, o Estado-membro avençara com as empresas
contratos administrativos de concessão de domínio, os quais reclamariam
observância do preceito constitucional. Salientou que, diversamente de
outras espécies da mesma classe das chamadas concessões administrativas —
a exemplo das concessões de uso e de direito real de uso — a de domínio
seria forma de alienação de terras públicas com origem nas concessões
de sesmarias da Coroa, hoje somente utilizada nas concessões de terras
devolutas da União, dos Estados e dos Municípios (CF/88, art. 188, §
1º). Mencionou que, da leitura das cláusulas contratuais, patentearam-se
duas coisas: a) as terras objeto das concessões caracterizar-se-iam
como devolutas, porque todos os contratos de colonização teriam sido
precedidos de decretos estaduais de reserva de terras devolutas, os
quais lhes serviriam de fundamento; e b) as companhias obrigar-se-iam,
como contraprestação, a realizar, nas áreas concedidas, diversos
serviços de utilidade pública que à unidade federativa, sozinha, não
seria possível empreender. Enfatizou que a Constituição compreenderia as
terras devolutas nas terras públicas aludidas. Observou que, embora
louvável a iniciativa de povoar suas terras, o erro teria sido conceder a
particulares, sem prévio consentimento do Senado, o domínio de áreas
superiores a dez mil hectares. Certificou que não constaria dos autos
alegação nem prova de autorização do Senado para as concessões, donde
configurada manifesta e incontroversa violação ao mandamento contido na
norma especificada.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
Concessão de terras públicas e segurança jurídica – 3
Ato contínuo, ressaltou serem extremamente consideráveis os seguintes
aspectos fáticos: a) os contratos em questão foram pactuados há 59 anos;
b) a cadeia dominial a partir daí perder-se-ia no tempo, abrangendo
extensa área que equivaleria, aproximadamente, a 40.000 km²
(corresponderia ao dobro da área do Estado de Sergipe); c) as concessões
de domínio foram realizadas por ente federativo, o que, presumir-se-ia,
haver despertado nos adquirentes fundada convicção da legalidade dos
negócios. Aduziu que, assim como no direito estrangeiro, o ordenamento
brasileiro reverenciaria os princípios ou subprincípios conexos da
segurança jurídica e da proteção da confiança, sob a compreensão de que
nem sempre se assentariam, exclusivamente, na legalidade. Isto
significaria que situações de fato, ao perdurar significativamente no
tempo — sobretudo se oriundas de atos administrativos, que guardariam
presunção e aparência de legitimidade —, deveriam ser estimadas com
cautela quanto à regularidade jurídica, até porque, enquanto a segurança
seria fundamento quase axiomático, perceptível do ângulo geral e
abstrato, a confiança, que diz com a subjetividade, apenas seria
passível de avaliação perante a concretude das circunstâncias.
Certificou que a fonte do princípio da proteção da confiança estaria na
boa-fé do particular, como norma de conduta e, em consequência, na ratio
da coibição do venire contra factum proprium, o que acarretaria a
vinculação jurídica da Administração Pública às suas próprias práticas e
ações. O Estado de Direito seria sobremodo Estado de confiança.
Explicou que a boa-fé e a confiança dariam novo alcance e significado ao
princípio tradicional da segurança jurídica — em contexto que, faz
muito, abrangeria, em especial, as posturas e os atos administrativos,
como advertiria a doutrina — destacando a importância decisiva da
ponderação dos valores da legalidade e da segurança, como critério
epistemológico e hermenêutico destinado a realizar, historicamente, a
ideia suprema da justiça. Versou sobre o princípio da segurança jurídica
e, inclusive, reportou-se a normas textuais de leis que disporiam
vários aspectos de convalidação de atos praticados pela Administração
Pública.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
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Ao tecer comentários sobre a convalidação de atos administrativos,
acenou que esta, consoante a doutrina, não conflitaria com o princípio
da legalidade. Ressurtiu que, na hipótese de a decretação de nulidade
ser feita tardiamente — quando da inércia da administração teriam sido
constituídas situações de fato revestidas de forte aparência de
legalidade, a ponto de fazer gerar a convicção de sua legitimidade —
seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se
concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela. Além
disso, citou precedentes em que o STF reafirmaria a supremacia
jurídico-constitucional dos princípios da segurança jurídica e da
proteção da confiança legítima sobre a legalidade estrita, diante de
prolongadas situações factuais geradas pelo comportamento da
Administração Pública. Noticiou que alguns juristas distinguiriam, na
matéria, entre convalidação e estabilização de atos administrativos, por
entenderem que só poderiam ser convalidados os atos que admitissem
repetição sem vício. Dessa feita, os atos inválidos, insuscetíveis de
aperfeiçoamento no presente, seriam, para efeito de regularização,
tão-só estabilizados ou consolidados. Elucidou que, a despeito de uma ou
outra nomenclatura, esta Corte viria decidindo que, por vezes, o
princípio da possibilidade ou da necessidade de anulamento seria
substituído pelo da impossibilidade, em homenagem à segurança jurídica, à
boa-fé e à confiança legítima. Avaliou ser esta a resposta jurídica que
conviria à espécie. Expressou não ver como nem onde pronunciar — meio
século depois, a nulidade das concessões de domínio feitas pela indicada
unidade da Federação a pessoas jurídicas, empresas de colonização, e
físicas, colonos — sem grave ofensa aos princípios constitucionais e
transtornos a relações de vida extremamente importantes. Expôs que
cidades formaram-se nessas áreas concedidas, com milhares de famílias;
comércio e lavoura expandiram-se significativamente; acessões e
benfeitorias públicas e privadas foram erguidas; o Estado dera origem a
outro, em 1979, seccionando sua área; múltiplas transmissões de domínio
sucederam-se, sob convicção de regularidade.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
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Além disso, estimou ser inegável que as concessões teriam cumprido seus
propósitos político-sociais, sem que se pudesse pensar em desvio de
finalidade, porquanto a colonização fora implantada no âmbito do
programa governamental de Vargas, a denominada “Marcha para o Oeste”. O
Brasil central era, ao tempo, composto de grandes vazios por ocupar e
desbravar, e União e Estados-membros não detinham condições materiais
de, sozinhos, realizar essa tarefa. Inferiu que os colonos,
destinatários últimos dos lotes, confiaram no Poder Público, duplamente:
no Governo Federal, que empreendia a política de ocupação territorial
sob o modelo das concessões de domínio, intermediadas e, em boa parte,
financiadas por empresas colonizadoras; e no então Estado do Mato
Grosso, que era o concedente. Acentuou que, nas décadas de 60 e 70,
ações governamentais, sob igual ânimo e propósito, foram aviadas no
centro-oeste e no norte do Brasil. Por fim, nada fazia supor,
objetivamente, que os títulos de propriedade concedidos não valessem.
Atentou que efeitos indesejáveis de colonizações ocorreriam não apenas
naquele ente político.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
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Com o registro de que esta decisão não refletiria em ação sob sua
relatoria, a Min. Rosa Weber acompanhou o Presidente. O Min. Luiz Fux
lembrou que haveria norma in procedendo do art. 462 do CPC a determinar
que o juiz, ao decidir, levasse em conta o estado de fato da lide.
Destacou ser a situação absolutamente irreversível e frisou ser esta uma
ação de cognição submetida ao STF. Explicitou que o exame do relator,
em prol da estabilidade social, influiria, também, na dignidade humana
daqueles povoados que já estariam ali há mais de sessenta anos. Pela
circunstância excepcionalíssima da causa, o Min. Dias Toffoli seguiu o
relator, considerando ser o objeto da proposição inicial única e
exclusivamente o descumprimento do § 2º do art. 156 da CF/46. Adotou,
ainda, as razões apresentadas pela União, que aduzia: a) não haver
discussão a respeito de seu domínio sobre parcela das terras objeto dos
contratos combatidos; b) não constituir fundamento desta ação grave
esbulho ocorrido em terra indígena; c) diferir o pedido veiculado nestes
autos daqueles das demais ações cíveis; d) inexistir relação de
prejudicialidade entre os feitos; e) não resultar — eventual julgamento
de improcedência, baseado exclusivamente na regularidade dos contratos
como causa de pedir — na certificação de titularidade da unidade
federativa sobre a vasta área do Xingu; f) não afetar o desfecho da
demanda o julgamento de ações em curso nesta Corte, bem como qualquer
outra concernente a terras indígenas, ou área ambiental, no Estado do
Mato Grosso. Agregou a isso manifestação de não servir a situação de
paradigma ou de precedente para nenhum evento, atestando que as
concessões realizar-se-iam em afronta ao preceito indicado. Discorreu a
respeito do princípio da segurança jurídica, do longo decurso e das
razões de equidade, estas em virtude de resultado havido em outra ação
cível originária em que a União e o Estado do Mato Grosso discutiam a
titularidade de terras. Aventou possibilidade de se suspender a
tramitação dos autos para que o Congresso Nacional viesse a placitar a
não autorização ocorrida e a ratificar os atos praticados. A Min. Cármen
Lúcia, ao salientar a restrição das áreas indígenas e da consequência
para o julgamento da ação relatada pela Min. Rosa Weber, subscreveu às
inteiras o voto condutor.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
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Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, Ayres Britto e Marco Aurélio,
que acolhiam o pedido. O primeiro reputava haver vício de origem
absolutamente insanável. Considerava a extensão da área e a ausência de
dados fáticos, para melhor avaliar a espécie. Ponderava que a União e os
Estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul saberiam definir os
casos concretos. O segundo aduzia que a causa estaria envolta em
ambiência de nebulosidade quanto: a) aos reais beneficiários das terras
públicas, se verdadeiros colonos, se empresas, se ONGs; e b) à natureza
jurídica dos atos formalmente celebrados. O último abordava a
possibilidade de se repetir hodiernamente a situação jurídica, visto que
essa regra da Constituição de 1946 teria sido reproduzida em textos
constitucionais subsequentes. Inferia que decidir pela improcedência do
pleito, ante a passagem do tempo, seria dar ao fato consumado
envergadura a sobrepor-se, inclusive, à Constituição. Salientava que a
ilegalidade originara, à época, a instauração de comissão parlamentar de
inquérito. Consignava que fato consumado, para merecer agasalho,
haveria de estar em harmonia com a Lei Maior. Rememorava que, em vista
da importância da matéria, na Carta de 1988 ter-se-ia passado a exigir a
autorização do Congresso Nacional e diminuído o número de hectares.
Observava tratar-se de concessão inicial que seria serviço público.
Discernia que o ente político transferira domínio de áreas de forma
muito extravagante, haja vista que abarcarcaria terras indígenas.
Vislumbrava que negar a procedência do vício estimularia o desrespeito à
ordem jurídica constitucional. Sublinhou que desdobramentos no campo
social ficariam na esfera de uma política a ser implementada pelo
Estado.
ACO 79/MT, rel. Min. Cezar Peluso, 15.3.2012. (ACO-79)
Informativo STF nº658
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