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11/06/2016

DIREITO PROCESSUAL PENAL. PRISÃO CAUTELAR FUNDADA EM ATOS INFRACIONAIS.



A prática de ato infracional durante a adolescência pode servir de fundamento para a decretação de prisão preventiva, sendo indispensável para tanto que o juiz observe como critérios orientadores: a) a particular gravidade concreta do ato infracional, não bastando mencionar sua equivalência a crime abstratamente considerado grave; b) a distância temporal entre o ato infracional e o crime que deu origem ao processo (ou inquérito policial) no qual se deve decidir sobre a decretação da prisão preventiva; e c) a comprovação desse ato infracional anterior, de sorte a não pairar dúvidas sobre o reconhecimento judicial de sua ocorrência. No que concerne às medidas cautelares pessoais, o conceito de periculum libertatis denota exatamente a percepção de que a liberdade do investigado ou acusado pode trazer prejuízos futuros para a instrução, para a aplicação da lei ou para a ordem pública. É válida a prisão preventiva para garantia da ordem pública, de maneira a evitar a prática de novos crimes pelo investigado ou acusado, ante a sua periculosidade, manifestada na forma de execução do crime, ou no seu comportamento anterior ou posterior à prática ilícita. Ademais, não há como escapar da necessidade de aferir se o bem jurídico sob tutela cautelar encontra-se sob risco de dano, o que, no âmbito criminal, se identifica com a expressão periculum libertatis, isto é, o perigo que a liberdade do investigado ou réu representa para a instrução criminal, a aplicação da lei penal ou a ordem pública e/ou econômica. Ao menos no que toca a este último fundamento, sua invocação como motivo para a decretação da cautela extrema funda-se em avaliação concreta da periculosidade do agente, ou seja, a probabilidade de que o autor de um facto-crime repita a sua conduta típica e ilícita. Assim, a probabilidade de recidiva do comportamento criminoso se afere em face do passado do réu ou pelas circunstâncias específicas relativas ao modus operandi do crime sob exame. Lembre-se que, também para fins cautelares, se aceitam como válidos os registros em folha de antecedentes penais ainda não definitivamente convolados em sentenças condenatórias, porquanto se, de um lado, não servem para elevar a pena, permitem ao juiz da causa, por outro lado, avaliar se a prisão do réu/investigado é necessária para preservar a ordem pública, ante a perspectiva de cometimento de novos crimes pelo acusado. Ora, se uma pessoa, recém ingressa na maioridade penal, comete crime grave e possui histórico de atos infracionais também graves, indicadores de seu comportamento violento, como desconsiderar tais dados para a avaliação judicial sobre a sua periculosidade? Sobre essa questão, duas considerações mostram-se importantes para o debate. A primeira delas diz respeito à natureza e ao grau de cognoscibilidade do juízo cautelar, em todo diverso - ainda que em relação de instrumentalidade - ao juízo de condenação. Deveras, para um provimento cautelar qualquer, nomeadamente o que impõe a segregação provisória do réu, basta, em conformidade com o texto do art. 312 do CPP, prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Já para o juízo de condenação, é necessária a prova da existência do crime e a prova cabal de sua autoria. Outrossim, o juízo cautelar labora com aparência (verossimilhança) do direito subjacente à postulação, mero juízo hipotético, alcançado por meio de cognição limitada (na extensão) e perfunctória (na profundidade), ainda assim idônea para permitir ao julgador decidir provisoriamente, tendo em mira a preservação de um interesse ou bem que se encontra ameaçado de perecimento ou dano ante a manutenção do status quo. Por sua vez, o juízo de mérito labora com a certeza sobre os fatos constitutivos, é definitivo e impõe cognição exauriente e ampla sobre os fatos articulados e as provas produzidas, somente com a qual se legitima a condenação do acusado. Dizer, então, que não podem ser extraídas informações sobre os processos por ato infracional para fins processuais, tout court, é, com a mais respeitosa vênia, afirmação sujeita a refutação. Evidentemente não cabe considerar atos infracionais como antecedentes penais, bastando, para dar lastro a tal assertiva, lembrar que ato infracional não é crime, que medida socioeducativa não é pena, inclusive quanto aos fins a que se destina, que o adolescente não é imputável, que a sentença final nos processos por ato infracional não é condenação. Daí, porém, a não poder utilizar, para avaliação judicial de natureza cautelar - que não pressupõe juízo de culpabilidade, mas de periculosidade do agente - o histórico recente de vida do acusado, ao tempo em que ainda não atingira a maioridade, vai uma grande distância. Os registros sobre o passado de uma pessoa, seja ela quem for, não podem ser desconsiderados para fins cautelares. A avaliação sobre a periculosidade de alguém impõe que se perscrute todo o seu histórico de vida, em especial o seu comportamento perante a comunidade, em atos exteriores, cujas consequências tenham sido sentidas no âmbito social, quais os atos infracionais praticados. Se estes não servem, por óbvio, como antecedentes penais e muito menos para firmar reincidência (porque tais conceitos implicam a ideia de "crime" anterior), não podem ser ignorados para aferir o risco que a sociedade corre com a liberdade plena do acusado. É de lembrar, outrossim, que a proteção estatal prevista na Lei n. 8.069/1990 (ECA), no seu art. 143, é voltada ao adolescente (e à criança), condição que o réu deixou de ostentar ao tornar-se imputável. Com efeito, se, durante a infância e a adolescência do ser humano, é imperiosa a maior proteção estatal, a justificar todas as cautelas e peculiaridades no processo de apuração de atos contrários à ordem jurídica, inclusive com a imposição do sigilo sobre os atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional (art. 143 do ECA), tal dever de proteção cessa com a maioridade penal. Não existe, portanto, vedação legal a que, no exercício da jurisdição criminal, utilize o juiz, excepcionalmente, dos registros relativos a atos infracionais praticados pelo acusado quando ainda adolescente. A toda evidência, isso não equivale a sustentar a possibilidade de decretar-se a prisão preventiva, para garantia da ordem pública, simplesmente porque o réu cometeu um ato infracional anterior. O raciocínio é o mesmo que se utiliza para desconsiderar antecedente penal que, por dizer respeito a fato sem maior gravidade, ou por registrar fato já longínquo no tempo, não deve, automaticamente, supedanear o decreto preventivo. Não será, pois, todo e qualquer ato infracional praticado pelo acusado quando ainda adolescente que poderá render-lhe juízo de periculosidade e autorizar, por conseguinte, a inflição de custódia ante tempus. Não teria sentido, seria um verdadeiro despropósito atentatório à excepcionalidade da providência cautelar extrema, considerar, por exemplo, atos infracionais equivalentes a crime de furto ou de falsificação de documento como indicadores da necessidade da prisão preventiva. De igual modo, mesmo em se tratando de atos infracionais graves, equivalentes a crimes de homicídio, roubo ou estupro, não se justificaria a segregação cautelar do réu ante a constatação de que tais atos infracionais foram perpetrados há anos, sem que se tenha notícia de novos atos graves posteriores. Seria, pois, indispensável que a autoridade judiciária competente, para a consideração dos atos infracionais do então adolescente, averiguasse: a) a particular gravidade concreta do ato infracional, não bastando mencionar sua equivalência a crime abstratamente considerado grave; b) a distância temporal entre o ato infracional e o crime que deu origem ao processo (ou inquérito policial) no qual se deve decidir sobre a decretação da prisão preventiva; e c) a comprovação desse ato infracional anterior, de sorte a não pairar dúvidas sobre o reconhecimento judicial de sua ocorrência. Assim, propõem-se os mencionados critérios orientadores que o juiz deve considerar na busca de um ponto de equilíbrio no embate, imanente ao processo penal, entre o poder punitivo do Estado e o direito à liberdade do indivíduo. RHC 63.855-MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 11/5/2016, DJe 13/6/2016.

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